"A Verdade não precisa de defesa; por si mesma ela se defende. A Verdade precisa ser proclamada!"

19 dezembro 2012

A perda dos valores faz o homem procurar a quem não se pode achar - Pequena reflexão sobre Ana Karenina, de Tolstói


Por Jorge Fernandes Isah

Em Ana Karenina, Tolstói aborda uma boa gama de problemas e dilemas que afligem a humanidade desde  o Éden. Temas como amor, traição, fidelidade, honradez, malícia, hipocrisia, ingenuidade, fé, etc, são ingredientes presentes no palco em que se desenrola a história.

Ele delineia minuciosamente os seus personagens, de maneira que os conhecemos profundamente. 

Muitas discussões iniciadas no sex XIX perduram até os nossos dias, mas, em especial, chamou-me a atenção a reflexão que o autor faz acerca da queda ou declínio intelectual e moral da sua época, o emburrecimento daqueles que deveriam defender e perpetuar a alta cultura, e o flagrante desprezo aos princípios judaico-cristãos na sociedade. De forma que entre os aristocratas e letrados é-se possível notar o que seria "regra" hoje: o desprezo ao conhecimento e à moral, e a exaltação dos instintos ao nível do irracional. 

Ana é um bom exemplo disso: viveu e morreu pelos seus prazeres e sensações, muitos equivocados, muitos exaltando-lhe o egoísmo e o narcisismo, muitos falsos e irreais, que culminaram numa segunda realidade, existindo apenas em sua mente. Mesmo sendo rejeitada pela sociedade, de maneira geral, seus pecados eram amenizados ou esquecidos por conta da sua beleza e sensualidade, onde os homens adoravam-na enquanto as mulheres desprezavam e invejavam-na. Pouquíssimos são os exemplos morais, num mundo infestado pela imoralidade, mas até mesmo esses reconheciam sua condição miserável e indigna, como a amante do irmão de Levine. A própria Ana reconhecia a desgraça em que se lançara, mas a ideia de uma felicidade amorosa e verdadeira e duradoura com Vroski era como uma espécie de recompensa a todo o mal que ela havia produzido [como se pudesse redimir-se a si mesma através da transgressão]. Temos as figuras dos ídolos, aqueles pelos quais se manifestam o desejo humano de deificação, seja o amor proibido ou qualquer forma de rebelião ao natural; pois, como criaturas imperfeitas e necessitadas poderiam gerar relações perfeitas e suficientes?

Interessante notar que o senso moral está presente, é reconhecido mas não aceito, como se acatá-lo significasse algum tipo de escravidão, e a sua rejeição consciente a liberdade. Ao contrário dos nossos dias, onde a moral, ética e os valores nobres do homem são desprezados por não serem reconhecidos como tais [o relativismo torna impossível qualquer verdade absoluta, entregando-se à irrealidade e contradição da "verdade relativa"; como uma roleta russa, em que o tambor está cheio de balas], lá, ao tempo de Tolstoi, o homem se entregava ao erro pela impossibilidade de não vivê-lo, ainda que reconhecido como tal, como erro, suas consciências fustigavam-nos, em uma montanha-russa de angústia e prazer. 

Esta é uma condição natural do homem, entre o bem e o mal e a escolha entre eles; ao passo que, atualmente, a ideia do mal está-se misturando de tal forma à do bem que o mal se faz bem e o bem mal, para a desgraça completa da humanidade. Aqueles que apontam esse estado de coisas como uma evolução social, o homem se desprendendo das amarras que o subjugaram pôr séculos, esquece-se de olhar para baixo e vislumbrar o abismo que está lançado. As amarras impediam-no de destruir-se, mas optou pela ruína. 

Recentemente, li uma crítica ao livro em que o autor dizia que a obra de Tolstói era uma denúncia ao conservadorismo e hipocrisia da Russia Czarista, e ao moralismo da época. Penso que é exatamente o contrário. Tolstói expõe, exatamente, o oposto, a decadência moral e cultural do período, em que o racionalismo e todas as suas consequências danosas ao homem, já revelavam um estado de degradação que atingia não somente as alcovas mas os gabinetes governamentais, eleitorais, e praticamente contaminava todas as demais relações. O homem provava do próprio veneno, sem saber que a morte seria uma consequência natural, sem acreditar-se moribundo. 

Tolstói é conservador, e dá à sua obra um caráter nitidamente existencial [ainda que o termo não tivesse, ao seu tempo, o conceito de hoje] e metafísico no desfecho final, indicando que o homem deveria fugir do comodismo e da lineariedade mental e espiritual à qual estava exposto e se sujeitava. Interessante que as implicações metafísicas têm respostas diretamente tiradas da realidade, num claro exemplo de lucidez e saúde espiritual [pode-se dizer até mesmo maturidade], como atestam as reflexões finais de Levine. 

O livro é um achado, e sua leitura pode surpreender, não como estamos acostumados a ser surpreendidos com o espanto e o susto gratuitos e muitas vezes bárbaro, mas levando-nos a meditar sobre questões cruciais ao ser humano: a vida e a morte, por exemplo. 

Leitura mais do que recomendada.

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