"A Verdade não precisa de defesa; por si mesma ela se defende. A Verdade precisa ser proclamada!"

30 novembro 2012

Pode o cristão se casar com uma incrédula?
















Por Jorge Fernandes Isah

Alguém pode pensar que este é um assunto morto. Tanto quanto o defunto mais velho enterrado no cemitério da sua cidade. Porém, isso me parece muito mais uma atitude para se afastar do assunto, rejeitá-lo ou negligenciá-lo, do que propriamente conhecê-lo à luz da Escritura.

Há muitos que consideram normal o casamento misto. Afinal, o marido crente abençoa a mulher não-crente, e vice-versa. Mas esquecem-se de que o contexto para esta afirmação não se encontra antes do casamento, quando um(a) crente poderia casar com uma(um) incrédula(o) e assim obter de mais tempo e empenho para convertê-la(o). Paulo nos diz que isso acontece quando dois incrédulos se casam, e no decorrer do casamento, um deles se converte a Cristo. Como o casamento é indissolúvel, não há porque o recém-convertido se separar da outra parte, a menos que esta não queira viver com ele.

Não há garantias de que um crente, casando-se com uma incrédulo, poderá levá-la a Cristo. Ora, como Paulo disse: "Porque, de onde sabes, ó mulher, se salvarás teu marido? ou, de onde sabes, ó marido, se salvarás tua mulher?" [1Co 7.16]. A salvação é divina, e somente Deus poderá salvar ou não; mas o crente é chamado à obediência; e a Escritura é clara em fazer separação entre o fiel e o infiel. Portanto, considero essa posição [e há pastores, líderes e muitos de nós que a defendem] como um conselho temerário, senão, vejamos:

1) Como crentes, desaprovamos a desobediência a Deus;
2) Segundo os defensores do casamento misto, a desobediência tem um elemento que justifica a rebeldia, ou seja, o altruísmo de se levar o futuro cônjuge a Cristo, valendo-se da piedade por sua alma. Mas isso nada mais é que enganar-se, achando que o erro pode se converter em acerto pelo simples desejo do nosso coração de que assim ele seja.
3) Levando-nos à conclusão de que o crente, mesmo em rebeldia, deve buscar por uma bênção por seus próprios meios e esforços, à parte do preceito divino de que lhe devemos, sobretudo, obediência.

A coisa toda fica pior quando se utiliza do exemplo de Salomão, o qual se entregou aos casamentos mistos, para ratificar esse pecado. É evidente que a Bíblia nos revela os erros de Salomão não para serem seguidos, mas exatamente como um preventivo para que não incorramos neles; ao nos mostrar os efeitos danosos que sobrevieram ao povo de Israel [a idolatria, p. ex.], mas para o próprio Salomão, que também se tornou idólatra, e queimou incenso para outros "deuses", e teve o seu reino dividido, ainda que Deus o poupasse desse desgosto, por amor ao seu pai Davi; mas assegurando-lhe de que sob o reinado do seu filho Roboão, Israel se esfacelaria.

O argumento do casamento misto, nada mais é do que o desejo do desobediente de convencer-se a si mesmo de que existem motivos nobres e piedosos para se aventurar a uma empreitada que significará rebelião e pecado. É isso mesmo! Quem age deliberadamente assim não comente nada além do que pecado! E o pecado é o desprezo ao próprio Deus.

Muitos também alegam que Deus pode abençoar o crente na desobediência. É possível? Sim, claro! O que, contudo, não absolve o crente em sua desobediência, ao rejeitar o princípio tão claramente exposto na Escritura, a separação que Deus estabeleceu para o seu povo. Fato é que o desobediente será disciplinado por isso, caso seja realmente um filho de Deus. Do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele, para todo o sempre.

Então, pode-se perguntar: o que o(a) crente deve fazer caso tenha se casado com uma(um) incrédula(o), e reconhece que pecou? Meu conselho é: arrependa-se! E dê o melhor testemunho cristão para que o(a) cônjuge também se arrependa de seus pecados, reconheça Cristo como Senhor e Salvador pessoal, e assim, formem um lar santo, em que a obediência aos preceitos divinos traga frutos de glória para o bom Deus.

Nota: Texto originalmente publicado no "Cotidiano Cristão", blog que tenho o prazer e a honra de dividir com o irmão Filipe Machado

16 novembro 2012

Sete razões não-bíblicas para ser calvinista


Quem disse que o facebook não nos pode surpreender com alguma boa novidade? Chegou a mim uma sugestão de texto que me foi como uma lufada de ar fresco. Tanto o ritmo quanto o próprio conteúdo se me apresentaram como uma leitura leve e agradável assim como cheia daquela profundidade que não precisa ser exposta para se fazer presente.
O texto sofreu poucas modificações. Como ele foi publicado em partes, tirei as referências às “próximas postagens”. Assim como eliminei uma referencia a comentários. De resto, está tal qual publicado em Voz do deserto, de Tiago Oliveira Cavaco.
AS SETE RAZÕES NÃO-BÍBLICAS QUE ME LEVARAM AO CALVINISMO
Ainda não trago grande bem ao mundo quando me envolvo em algumas discussões. Não porque essas discussões assentem sobre assuntos pouco importantes mas porque tenho um infeliz talento de ser capaz de pregar a higiene numa luta de lama. Os últimos anos têm sido por isso de aprender a ficar calado não porque ache que as palavras são desnecessárias. Estou cada vez mais certo da importância das palavras. Falta-me é o discernimento de usá-las na medida certa para que a fé brilhe acima do facto de ser minha. Não sei se todos compreenderão o dilema mas envolve boa parte da minha existência. No fundo, calar mais para falar melhor.

Posto isto não tenho como não fazer uma perninha no assunto do calvinismo. Desde que SDB se tornou uma Igreja autónoma e eu fui consagrado Pastor tenho tentado uma maneira mais crescida de debate teológico. Uma das maneiras mais crescidas de debate teológico que tenho assumido e encorajado aos membros da minha igreja é simples: abandonar quase todos os debates teológicos nos quais temos andando envolvidos, eu e os membros da minha igreja. Por ridículo que pareça, uma das jóias da Coroa da Igreja Baptista de S. Domingos de Benfica é a relativa tranquilidade dos seus membros em discussões nas redes sociais. E ainda podemos melhorar muito, muito mais. Mas de um modo geral o pessoal de SDB procura pudor onde os outros arrancam pujança. Por que razão? Porque, e simplificando muito, quando o debate teológico não nos custa pessoalmente é porque não tem um valor real na nossa alma. Conheço o dispositivo porque ainda me é fácil praticá-lo: saímos para amolgar as cabeças dos outros com o nosso coração duro. É tão difícil discordar em amor que acabamos por tentar fazê-lo só mesmo quando não existe alternativa. E com isto não estou a dizer que um cristão só pode meter-se em discussões onde tenha de discordar em amor. Há discussões onde a discórdia tem de ser até violenta porque não existem irmãos no horizonte. Aí, de qualquer modo, deve vigorar ainda a educação, a elegância e a elevação. Nem que seja para arrasar o adversário que está errado.

Falava-vos de calvinismo. A palavra calvinismo dá-me muito trabalho porque sou calvinista. Mais adiante já vos falarei melhor acerca das questões semânticas mas para o efeito imediato devo dizer que é o facto de ser calvinista que me leva a não dar grande valor ao termo. Um dos refrões que mais repito na minha Igreja é que, com a chegada de pentecostais e carismáticos à congregação, Deus não me chamou para fazer baptistas de pentecostais nem para transformar arminianos em calvinistas. O meu desejo é pura e simplesmente pregar o Evangelho que depende cem por cento de Jesus Cristo. Acontece que no último mês, e muito por conta de uma frase magistral do Dr. Shedd que citei, o assunto voltou a bater à minha porta de uma maneira que acho irresponsável não atender. Qual o meu compromisso então nesta hora? Dar-vos um breve roteiro pessoal que conte do caminho que me fez chegar ao calvinismo. Mas ao fazê-lo devo procurar um método amistoso. Como aqueles jogos de futebol na escola secundária em que uma equipa era tão mais forte que a outra que lhe dava avanço. O jogo começava com cinco a zero a favor dos mais fracos. Lembram-se? Neste caso, e perdoarão o que pode parecer arrogância mas é apenas misericórdia, vou explicar sete razões não-bíblicas que me levaram ao calvinismo. Porque se fosse falar de razões bíblicas receio que os meus opositores nunca mais se levantassem do chão. Embora qualquer calvinista reconheça a existência de uma minoria de textos difíceis todos os outros em que preto no branco a Palavra explica que é Deus quem toma a iniciativa de escolher os Seus filhos são tão esmagadores que me sentiria a bater em mortos. Tendo clarificado isto, avanço. E sem notificar um único versículo.

1. Kierkegaard.
Foi a leitura do filósofo dinamarquês que em muito me inclinou para o calvinismo. Reconheço que o embalo foi nesse sentido mais existencialista que da ordem da Teologia Sistemática. Ora, Kierkegaard fala muito de Lutero e nem por isso de Calvino. Mas é Kierkegaard que escreve nos seu diários uma coisa tão simples quanto óbvia: “a ideia de um livre-arbítrio abstracto é uma fantasia. O conceito de pecado mantém qualquer pessoa cativa de todas as maneiras.” Ou seja e numa paráfrase pessoal, se todos os homens são pecadores, como a Bíblia ensina, a liberdade só pode ser uma brincadeira de mau gosto.

2. Os calvinistas são vistos como bad boys e são os bad boys que ficam com a miúda.
Lembro-me da primeira vez que inquiri um amigo um pouco mais velho do que eu e que na altura me influenciava quando me apercebi que era calvinista: como é possível que sejas calvinista? A pergunta foi feita em jeito de acusação de um crime mas o que eu não esperava é que uma vida de crime pudesse ser tão atraente. Os calvinistas ao transgredirem os muros do livre-arbítrio quebram a suprema propriedade privada do mundo moderno: a crença de que o homem tem na sua liberdade o bem maior. Mais que bons teólogos os calvinistas são bons bandidos.

3. O livre-arbítrio é racionalmente ruim, raso e rarefeito.
A acusação típica é a que o calvinismo é absurdo, como se propusesse um jogo em que os dados estão viciados. Logo deposita-se na escolha toda a razoabilidade do cristianismo: cada homem decide o seu destino. Além do que já mencionei no ponto 1, o livre-arbítrio é racionalmente ruim porque como pode a criatura de um Criador ditar as regras pelas quais se quer comportar? O livre-arbítrio é racionalmente raso porque quer fazer de um oceano profundo um lava-pés daqueles que estão na entrada das piscinas municipais. O pragmatismo arminiano, a maneira como explica a salvação em poucos passos burocráticos, torna a santidade chata e espalma a teologia (e daí o degrau para o ponto 2, em que os calvinistas aparecem aos olhos dos outros como ovelhas negras - um dos segredos mais bem guardados é que os calvinistas identificam-se efectivamente mais com um pecador talentoso que com um beato automático). O livre-arbítrio é racionalmente rarefeito porque rouba o oxigénio. A pessoa vive oprimida com a reinvenção permanente da sua liberdade. Sem ar ninguém pensa bem. A inspiração, que permite a existência dos poetas, é criminalizada pelos advogados da escolha, maus a conviver com a subjectividade dos mais marginais. Pessoalmente só conheço em Portugal um poeta arminiano (um grande abraço para o João Tomaz Parreira). Já cada calvinista, identificado com os abismos do pecado e com as alturas da graça, tem dentro de si uma montanha de heterónimos.

4. As melhores histórias de amor são de rendição e não de escolha
Sob a possibilidade de arruinar esta verdade com um mau exemplo, devo indicar um dos primeiros momentos que ma mostrou na televisão da minha infância: Modelo e Detective. Basicamente “Modelo e Detective” era uma série que, no meio de assinalável impenitência e alguma libertinagem, exibia um romance entre dois sócios detectives que se detestam na mesma medida que se amam. A relação estava longe de ser biblicamente sustentável mas serve para o efeito deste argumento. O diálogo mais comum entre Bruce Willis e Cybill Shepard era blam! Por cada porta que batia a criança que assistia aos episódios tinha o seu entendimento de amor dilatado para a ciência do estrondo. E apercebia-se que um importante apêndice deveria ser acrescentado à moral dos romances aprendidos na infância: com frequência os amantes mais sinceros parecem quererem matar-se um ao outro. Romeu e Julieta de Shakespeare já tinham feito da morte voluntária uma conquista amorosa mas a tentativa de homicídio é outro negócio. Desde que fui exposto a essa compreensão ganhei a consciência que a luz que iluminasse a minha noiva na primeira vez que a visse podia ser crepuscular (e assim acabou por acontecer quando as minhas inaugurais interacções com a Ana Rute tiveram mais de guerra que de galanteio). Tudo isto para dizer que os calvinistas percebem bem que esta mesma lógica se aplica ao romance entre Deus e os seus filhos.

Os maiores amantes de Deus foram antes e sem excepção pessoas que o odiaram. O Criador não tem namoradinhos que o escolheram. Não é o seu estilo. As pessoas que amam Deus contam o enredo explicando que se tratou de um rapto de onde saiu um síndrome de Estocolmo (a estima inesperada que nasce do raptado pelo raptor). O amor cristão é um amante que encurrala o outro, não um encontro paliativo de sinergias. Não se escolhe o Senhor como se escolhe um par de sapatos. As pessoas que falam sobre a sua fé em jeito de opção por Deus além teologicamente equivocadas têm um péssimo critério para histórias de amor.

5. João Calvino não inventou o Calvinismo
O melhor a explicar isto é Spurgeon. Quando diz que o calvinismo é uma alcunha para o Evangelho, para a mensagem central expressa nas doutrinas da Graça. Alcunha não é nome mas para alguns efeitos práticos pode servir. É óbvio que Jesus não veio deixar uma mensagem calvinista. O maior JC é ele e não o João Calvino. O próprio João Calvino revolver-se-á no túmulo ao saber que fizeram do seu apelido um resumo do sistema intelectual sobre o qual assentam as verdades nucleares do cristianismo. Por isso nenhum bom calvinista lutará pelo calvinismo. Mas pelas ideias que levam a alcunha de calvinismo. Porque nessas ideias está um sumário de palavras humanas acerca do do valor infinito e extra-linguístico que tem a história de Cristo. João Calvino não inventou o calvinismo. O calvinismo é uma alcunha recente para a fé cristã, essa dos apóstolos, dos padres da igreja, de Atanásio, Agostinho, de Niceia e Constantinopla, dos nominalistas, dos reformadores, dos puritanos, dos evangélicos, e de todos os santos e de todos os pecadores regenerados. Uma ironia irresistível é que até os cristãos que estão convencidos que destestam o calvinismo serão, nesse sentido, salvos pela verdade que ele alcunha. No fim o que dirão os calvinistas? Viva o calvinismo? Céus. Não. Os rótulos têm graça mas Cristo tem a Graça. [1]

6. As pessoas que odeiam o calvinismo não têm sentido de humor (e de arquitectura)

Não gostaria de colocar a tónica na negativa quando vos falo das razões que me levaram ao calvinismo. Até porque o verbo atrair é fundamental para os calvinistas e a sua acepção é completamente positiva. No entanto, e como em tantas coisas na vida, há caminhos que se percorrem principalmente porque os outros nos desagradaram. E devo confessar que também escolhi o calvinismo porque as outras opções me pareceram piores. Ora, ao usar o verbo escolher sei que me podem acusar de contradição depois de tanta pancada dada no livre-arbítrio. E se o fizerem apenas confirmam a tese deste ponto: na incapacidade de acolherem paradoxos, coisas que parecem mas não são contraditórias, os não-calvinistas mais que revelarem pouca nuance revelam falta de sentido de humor.

Pode ser um cliché preguiçoso mas também acho que o humor é sinal de inteligência. Não afirmo que o humor é sinal de discernimento (o mundo está cheio de pessoas bem-dispostamente erradas) mas que os que têm discernimento têm também algum humor. Creio que o sentido de humor passa por uma capacidade de jogar com a proporção das coisas, sugerindo novas combinações a partir de comparar medidas diferentes. Humor é tanto recreio quanto medição. Para não tornar isto demasiado abstracto: rio-me com o que me faz parecer novo o que não o é (e para o efeito do argumento: nada é puramente novo num mundo que não foi criado pelas criaturas que o habitam). As coisas mais engraçadas são para mim inaugurações de antiguidades e provocam um efeito de surpresa que vai além da sua utilidade. Isto faz-me perceber a ligação directa entre beleza e verdade e estar mais sensível a alegrar-me com tudo aquilo que subsiste por ser bonito, independentemente de o compreendermos e o sabermos aplicar na hora. Por que se riem os homens de coisas que não lhes enchem o estômago? Porque a sobrevivência é também uma questão de alegria. É a verdade a ser saboreada antes de ser entendida.

É aqui que entram os não-calvinistas e a sua falta de sentido de humor. A minha tese é: o pragmatismo intenso do que crê que tudo só se resolve a partir da sua intervenção individual sobre o universo externo perturba todos os momentos que não trazem explicação (logo a acusação simplista de Deus não poder existir por causa do incompreensível sofrimento da humanidade, ou, existindo, não poder ser bom). A pessoa inquieta-se (e equivoca-se) e fica menos disposta a olhar à sua volta para tudo o que existe além da urgência da resposta que procura (não aceitar a existência do sofrimento é um recuo a só sabermos viver com o que sabemos explicar - uma triste ironia sobretudo para os cristãos que supostamente acreditam que Deus reconcilia o mundo consigo através do sofrimento voluntário do Seu filho). Logo tem menos atenção para ver. Quanto menos vê, menos aprecia e quanto menos aprecia menos compara. Quanto menos compara mais material de alegria perde, alegria essa de jogar com combinações frescas de medidas conhecidas. Resumindo muito: o não-calvinista preocupado em resolver o mundo a partir da sua liberdade ri demasiado pouco. Rir pouco é grave porque ajuda-o a reduzir o cosmos à sua ansiedade. Reduzir o cosmos à nossa ansiedade é uma distorção violenta da realidade porque uma coisa é uma pessoa e outra coisa é o cosmos. Rir é por isso discernimento (o contrário do provérbio português que diz “muito riso pouco sizo” e que alimenta a condenação que os vizinhos culturalmente católicos estendem às pessoas que saem das igrejas evangélicas sem o ar pesado da religião). Não saber rir é não saber avaliar. E fechar os olhos ao que não tem explicação imediata. Um mundo sem mistério é uma mentira grosseira porque o homem é pequeno demais para a grandeza da Criação. Os calvinistas estão mais abertos ao mistério do mundo que é Deus ter nas suas mãos a história de tudo. Riem mais porque reconhecem as larguras e os comprimentos e jogam com eles através das regras do Criador. Não é ao calhas que investem em arquitectura (ainda que possivelmente simples). Os não-calvinistas são péssimos em arquitectura (numa escala geométrica como comparar a vontade do homem com a vontade de Deus?) e por isso os primeiros a meter neóns e powerpoints pirosos (vocês já viram que este é-me um assunto caro) nas suas casas de oração. Onde a beleza e a verdade se submetem à ditadura da escolha qualquer pedaço de lata vale por termos sido nós os primeiros a ver nele o brilho do sol, uma metáfora possível da nossa obsessão com a novidade. A lógica da liberdade está a matar o deslumbramento com o que é belo e verdadeiro. E a fazer-nos rir menos. Os calvinistas não estão nessa.

7. A oração não é uma declaração de independência
Claro que a liberdade não é uma coisa má. Tanto não é que a Bíblia descreve-a como um efeito da presença de Cristo. Um efeito e não uma causa. A ênfase das Escrituras é que somos livres por causa de Cristo e não que somos cristãos porque somos livres. Isto é absolutamente claro nas páginas da Palavra e os seus autores humanos não precisaram de o escrever na defensiva, a uma cultura que idolatra a liberdade como o bem maior. É também por causa disto que nas Escrituras a vontade de Deus dança com a vontade do homem num movimento tão gracioso quanto veloz na ausência de territórios definidos. A simplificação (polémica mas que curiosamente nenhum dos meus irmãos arminianos me apontou durante a semana) é esta: quando as coisas correm bem a responsabilidade é de Deus, quando as coisas correm mal a responsabilidade é do homem. Se alguém que implicar com o Evangelho (e consequentemente com o calvinismo) é por aqui que tem de começar. Não foi ao calhas que os primeiros cristãos tiveram de ganhar uma noção da identidade de Deus (os primeiros quatro séculos a discutir a Trindade) e imediatamente a seguir uma noção da identidade do homem (sobretudo o quarto século a discutir e a concluir sobre antropologia e o pecado original). O que os arminianos devem recordar (e os católicos) é que o pelagianismo continua a ser herético para todos os cristãos. Não existe ponta de participação do homem na sua própria salvação.

Não sendo a liberdade uma coisa má também não precisa de ser a coisa acima de todas as outras. Continuo convicto que as coisas que nos são mais queridas são geralmente vistas como exercendo um domínio, pelo menos emocional, sobre nós que não olhamos como negativo. As nossas paixões são mais frequentemente descritas como tendo nos conquistado que nos persuadido. E com Deus não é diferente. Basta olharmos a maneira como louvamos e oramos. Nenhum cristão canta: “obrigado Senhor porque naquele dia escolhi-te”. Nenhum cristão ora: “Pai nosso que estás no céu, santificado seja o meu nome, venha a Ti o meu reino, seja feita a minha vontade assim na terra como no céu.” A oração, um fenómeno estranhíssimo que a Palavra nos mostra como um pedido de Deus para nós lhe pedirmos coisas, só ganha sentido com um coração mais aberto que a lógica pragmática da nossa autonomia. Se a liberdade é a chave de leitura da existência do cosmos por que razão Deus não se limita a fazer aquilo que deve ser feito sem depender que nós lhe peçamos? Talvez porque o que esteja em causa seja uma representação bela e verdadeira em que os filhos de Deus obedecem a uma vontade maior que a deles próprios. Oramos também porque quando nos submetemos à vontade de Deus somos transformados de uma maneira que a nossa liberdade não nos permite. A oração enche o coração daquele que acarinha a dependência e não tanto, parece-me, do que acarinha a autonomia. Pelo menos sei que enquanto mantive a posição arminiana da minha infância e juventude a oração nunca fez grande sentido.

Sei que prometi razões não-bíblicas e esta última resvalou para o terreno. Ainda assim não citei um único versículo. Estas sete razões não querem convencer porque o terreno onde os cristãos devem ser convencidos é a Bíblia e não a experiência individual. Muitos amigos e irmãos mostraram-se durante esta semana absolutamente invulneráveis às minhas razões e eu saúdo a liberdade deles de assim se sentirem. Claro que não posso saudar o modo como descartam a predestinação e outras coisas que a Bíblia dizendo sim, põem a dizer não (e permitam-me uma observação que desejo que seja mais fraterna que crítica: enquanto a comunidade evangélica, e a pentecostal em particular, permanecer ouvindo pregações temáticas e não-expositivas é óbvio que pode adiar por décadas os textos que não lhes agradam e seleccionar criteriosamente na Bíblia os excertos que lhes confirmam o dogma apócrifo do livre-arbítrio - the point is: leiam a Bíblia sem medos, caramba!).

Posto isto e como ponto final, uma grande simplificação: os hiper-calvinistas são a pior escória que já habitou o Planeta. Prefiro mil arminianos a um hiper-calvinista. O hiper-calvinismo é obsceno quando recusa a evangelização, uma tarefa que na Palavra é óbvia, não-opcional e urgente. O hiper-calvinismo é intelectualmente patético (o facto de Deus predestinar é diferente de nós Lhe conhecermos a predestinação), espiritualmente morto (os hiper-calvinistas não precisam de procurar Deus porque acham que Deus é que Se achou quando escolheu os eleitos), e blasfemo (o hiper-calvinista dá por si a achar que Deus lhe deve a salvação, fazendo desgraça da graça). Não chamem teologia ao hiper-calvinismo porque o hiper-calvinismo não passa de um zombie. Um tiro na cabeça e fica tudo resolvido.
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[1] (...) Ouço dizer que não precisamos de rótulos e que os rótulos estragam as verdades. Permitam-me discordar. Qualquer pessoa que use a linguagem aceita usar rótulos porque as palavras apropriam-se à realidade mas não a esgotam. Nesse sentido, todas as palavras são rótulos. Enquanto não comunicarmos telepática e espiritualmente vamos ter de usar rótulos. Há uma discriminação negativa de alguns termos que são apelidados de rótulos sempre que as pessoas não se agradam deles. E então o calvinismo leva nas orelhas porque é um rótulo. Dizem essas pessoas que preferem dizer que são apenas cristãs, seguidores de Cristo e outras expressões que em breve serão tão chatas como as que agora rejeitam convictamente (ou que já são). Na minha opinião esta atitude demonstra pouca humildade linguística e, em último grau, falta de sentido de humor. Os calvinistas usam rótulos porque usam a linguagem. E enquanto usam rótulos divertem-se (manifestamente mais que os seus opositores, sempre ansiosos para chegarem às línguas dos anjos). (...)

FONTE: ROBERTO VARGAS JR