"A Verdade não precisa de defesa; por si mesma ela se defende. A Verdade precisa ser proclamada!"

27 abril 2012

Que será dos que nunca ouviram? Uma breve confissão


Por Leonardo Bruno Galdino


Esse é um assunto que sempre me incomodou bastante, a saber, o destino eterno daqueles que nunca ouviram falar de Cristo. Deixando de lado se os tais ainda existem hoje (particularmente, penso que haja) e outras questões parecidas, bem como as várias perspectivas sobre o assunto, vou logo resumir a minha posição: todos os eleitos, fatalmente, ouvirão acerca de Cristo por meio da pregação da Sua Palavra. Nem todos os que ouvem são eleitos, obviamente, mas todos os eleitos ouvirão. Ainda que digamos que cabe somente a Deus julgar tais pessoas, não somos autorizados, pelas Escrituras, a pensar que poderá ser salvo quem nunca ouviu de acerca de Cristo, uma vez que "a fé vem pelo ouvir" (Rm 10.17), sendo esta mesma fé um dom de Deus exclusivamente para os Seus eleitos (cf. Tt 1.1). Estes, por sua vez, vem a Cristo pela pregação (cf. 2 Ts 2.13, 14).

Há de se questionar em que consiste essa "pregação". De pronto, rejeito a perspectiva segundo a qual a revelação geral (criação, cultura, moralidade, etc.) é suficiente para a salvação, pois, se assim fosse, a fé em Cristo seria necessária apenas para alguns (sinceramente, não creio na revelação geral nem como meio salvífico extraordinário). Nesse quesito, penso em Cornélio, centurião romano sobre o qual se diz ter sido "piedoso e temente a Deus" (At 10.2), mas que precisou ouvir explicitamente acerca de Cristo por intermédio do apóstolo Pedro para ser salvo (ver todo o capítulo 10 de Atos). Rejeito, também, a noção segundo a qual a pregação pode ser entendida como o exemplo de vida dos cristãos ("conversão pelo exemplo", tão propagada pelos pietistas e místicos medievais), pois nossas vidas não podem ser melhores do que a pregação viva da Palavra de Deus.

Há, ainda, um equívoco a ser corrigido, e este tem a ver com a relação entre Decreto e Providência. Novamente citando o caso de Cornélio (somente para não citar todos os eleitos), não podemos dizer que ele já era salvo antes de ouvir a Palavra. Pelo decreto, sim, ele já constava entre os eleitos, mas não pela Providência, haja visto não ter chegado ainda o tempo da concretização do decreto. E o que é a Providência, senão os meios que Deus usa para alcançar aquilo que Ele decretou? Nesse caso, Cornélio precisou, na História, ouvir a Palavra, sendo regenerado pelo Espírito para que pudesse, então, crer e ser salvo.

Assim sendo, creio ser a pregação o meio providencial responsável por infundir fé no coração do eleito. Só a pregação? Bem, como já falei acima, se há exceções elas não são especificadas pelas Escrituras, pelo que me reservo ao direito de me ater apenas àquilo que nos é afirmado pela Revelação como regra, em vez de especular sobre a exceção. E me valho, aqui, do pertinente comentário de Calvino a Romanos 10.14 (..."e como ouvirão, se não há quem pregue?"). Ele diz que "o que Paulo está descrevendo aqui é somente a palavra pregada, pois este e o modo normal que o Senhor designou para comunicar sua Palavra. E se se argumenta, à luz desse fato, que Deus não pode dar-se a conhecer entre os homens só por meio da pregação, então negaremos que isto era o que o apóstolo pretendia transmitir. Ele estava transferindo somente a ordinária dispensação divina, e não pretendia escrever uma lei à sua graça" (ênfase minha). E me é muito claro, ainda na Escritura, que Deus sempre envia Seus arautos para os lugares em que há eleitos Seus para serem alcançados (cf. At 18.10; 13.48; Jonas e os ninivitas, etc.). Novamente citando o reformador francês (agora em seu comentário a Romanos 10.15 - "e como pregarão se não forem enviados"), "quando alguma nação é agraciada com a pregação do evangelho, tal fato é uma garantia do amor divino".

Por último, não penso que este seja o típico assunto que deva ser relegado apressadamente ao "mistério", como se as provas bíblicas acerca dele fossem insuficientes ou inexistentes. O máximo que posso dizer quanto aos que nunca ouviram é que cada um será julgado de acordo com a resposta que deu à luz que teve, mas não para uma possível absolvição. Para o quê, então? Bem, embora eu tenda a crer aqui em possíveis níveis de sofrimento no inferno (cf. passagens como Mt 11.22, 24; Lc 12.47, 48; 20.17), prefiro não arriscar ir além daquilo sobre o que a Escritura não lança senão faíscas.

Soli Deo Gloria!



Nota: A foto desta postagem não consta na publicação original

22 abril 2012

Ayres Britto, Maquiavel e a mentalidade revolucionária

Por Fábio Ribas



Assisti estupefato à entrevista do nosso atual presidente do STF, Ayres Britto, no Jornal da Globo nesta semana. Minha perplexidade foi constatar, diante dos meus olhos, tudo aquilo que homens como Julio Severo e Olavo de Carvalho já nos têm alertado há mais de uma década.

O discurso de Ayres encarna perfeitamente o anti-cristo de Maquiavel, o Estado que se opõe a tudo aquilo que se chama Deus. A mentalidade revolucionária com todas as suas mais mesquinhas características estão ali presentes nas palavras ditas pelo Ministro. A conclusão infeliz é que nada mais há para esperarmos de um STF que há décadas tem sido montado para a defesa de uma visão revolucionária e maquiavélica e que, agora, será coroado pelo Príncipe que faltava para que o caminho seja finalmente desobstruído de todos os seus inimigos.

Antes de seguir adiante, preciso esclarecer uma diferença que é fundamental para a maioria dos leitores deste texto: profeta e revolucionário. Assumo aqui a diferença proposta pelo filósofo Olavo de Carvalho no seu ótimo livro “Maquiavel ou A confusão Demoníaca”. Profeta é aquele que vaticina o futuro revelado por Deus, enquanto o revolucionário o força, planeja o futuro e busca o seu advento por meio da influência intelectual exercida sobre um governante e sobre os candidatos a governantes. O revolucionário quer mudar a História e definí-la pela força do seu discurso. Mas o discurso é apenas o anzol com o qual se fisga o futuro, pretendendo-se instaurá-lo no presente, porque a instauração da revolução se dá pela força militar e pela imposição de leis que deflagrem essa Nova Era. E é aqui que vemos as palavras de Ayres se encaixarem perfeitamente não só com Maquiavel, mas com Gramsci e Hegel também. Do outro lado, o profeta é tão somente boca de Deus e não um usurpador do lugar de Deus pela força do Estado.

Sigo a linha de que o profeta e o revolucionário, histórica, biblica e filosoficamente, não são apenas contrários mas, principalmente, são inimigos um do outro. E, portanto, Ayres encarna a mentalidade revolucionária contra a qual os profetas são convocados por Deus a fazerem oposição. Ainda para esclarecer melhor, ofereço a definição de mentalidade revolucionária proposta pelo filósofo Olavo de Carvalho: “projeto de mudança social profunda a ser realizado mediante a concentração de poder numa elite revolucionária”. E seja o Nazismo, seja o Comunismo, seja a Nova Ordem que vem se implantando nos EUA, no Brasil e por vários outros países do mundo, esta mentalidade revolucionária é o que torna comum todos estes movimentos (que são mais do que movimentos, são uma mentalidade, uma cosmovisão).

O profeta, ao contrário do revolucionário, poderá ouvir de Deus: “Você falará, mas eles não se converterão”. E mesmo assim o profeta deve obedecer ao chamado feito por Deus. Já o revolucionário jamais dobrará a sua vontade pessoal, nem sua ânsia pela reengenharia social - esta sua cobiça por impôr o Reino de Deus pela força e pela espada - para se submeter ao controle de Deus. O anseio do revolucionário está para Barrabás, assim como o do profeta está para Jesus. O revolucionário destituirá todos os poderes vigentes, legítimos ou não, para impôr sobre o presente a sua certeza de futuro. O profeta, consciente de seu legado histórico, convencido de que há um lastro, uma tradição, uma presença histórica e interventora de Deus, ele se definirá na oposição ao revolucionário: o profeta sempre será um conservador, porque tem plena consciência de que vaticina as palavras do Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Porque, nas palavras do filósofo Olavo de Carvalho, o "conservador é aquele que legitima suas ações em função da autoridade do passado". E todo profeta sabe que o nosso Deus permanece sendo o Deus de nossos pais. E o revolucionário, neste contexto, é exatamente aquele que não honra o seu e a sua mãe.

Então, quando Ayres diz que “O Supremo se tornou uma casa de fazer destino” e que a opinião pública, as controvérsias surgidas na imprensa sobre o papel do STF, não incomodam aos juizes, aos magistrados, é de se assustar tamanha independência de um poder que, numa democracia, tão conscientemente se desconecta do povo ao qual deveria servir e com o qual deveria se importar. 

A tragédia maquiavélica se instaura ainda mais quando Ayres diz, ao ser perguntado sobre o casamento gay e a questão dos aborto eugênico, para que serve o STF:“Para arejar costumes, mudar paradigmas, inaugurar eras de pensamento, de sentimento coletivo, e nós somos submissos à Constituição” (grifo nosso). Ayres, com estas palavras, revela-se arauto da mentalidade revolucionária. Mas faz parte do embuste do revolucionário transvestir-se de profeta para enganar a muitos, por isso muitos entre os cristãos confundem os dois papéis e o revolucionário aproveita-se dessa confusão demoníaca. Sobre essa confusão tramada pelos revolucionários, que acabam assumindo um papel de anti-profeta, Olavo diz: “...investir-se da autoridade profética para lutar contra a Providência e tentar inverter o curso divino da História não é uma “moralidade”. Não é nem mesmo perversão política. É a rebelião metafísica, o pecado contra o Espírito Santo” (p. 46).

Assim, para que não haja dúvida da cosmovisão que molda a cabeça de Ayres, ele consegue ligar alhos com bugalhos, quando o repórter lhe pergunta o que pensa sobre a Ministra Eliana Calmon e suas duras palavras contra “os bandidos de toga”. Ayres diz: “Mas, no fundo, o que ela quer é o judiciário na vanguarda da renovação dos costumes”. A não ser que Ayres esteja afirmando que os costumes do judiciário são esses mesmos, isto é, os costumes são a bandidagem de toga e isso precisa ser renovado, na verdade, mais uma vez, ele faz um salto para nos indicar qual caminho ele seguirá à frente do STF: a revolução dos costumes. E como Ayres fará isso? Em determinado momento da entrevista, ele saca do bolso do paletó sua mont blanc e diz que ele tem apenas uma caneta e não uma varinha de condão. Mas sabemos que Ayres tem mais, muito mais do que apenas uma caneta em suas mãos. Há um STF montado para seguir adiante com a agenda revolucionária anti-cristã (e nem vou desenvolver o tema do sério risco que corre o mensalão de prescrever sem julgamento), há um Congresso fraco e débil em sua oposição ao Governo e uma “Presidenta” que corrobora com a agenda mundial do pós-cristianismo.

O caminho no Brasil e no mundo está aberto e a Mentalidade Revolucionária já faz parte da nossa cultura, mas ainda pouquíssimos acordaram para o que está acontecendo. Infelizmente, a Igreja se perde em discussões alienantes e que, na verdade, só corroboram com a mentalidade revolucionária. Um bom exemplo disso foi o artigo Deus é de Esquerda ou de Direita? Um texto de Hermes C. Fernandes e que menospreza os fatos da história, esconde escândalos terríveis muito mais satânicos e diabólicos do que qualquer mazela financiada pela chamada Direita e coloca, sorrateiramente, o comunismo como se fosse apenas o outro lado de uma moeda, uma simples outra opção. Todavia, essa manipulação absurda dos fatos também faz parte da mentalidade revolucionária. “O filósofo precisa falar da verdade com a qual ele mesmo se relaciona. Verdades que ele conhece e não um jogo de intelectualidade absurda. O filósofo deve voltar a apelar ao seu testemunho solitário e confessar da sua relação com a verdade. Precisamos voltar ao conhecimento sincero para podermos confrontar a rede de mentiras”, diz Olavo de Carvalho. É preciso discernir as mentiras e a manipulação dos fatos. Os fatos são os mesmos e eles estão à frente dos nossos olhos, mas nossos interesses pessoais, nossas ideologias, nossas cosmovisões podem manipular, distorcer e até mesmo usar os mesmos fatos ora a favor de um argumento, ora contra o mesmo argumento.

Enfim, o Príncipe já está assentado em seu trono e seus consultores e conselheiros lhe assediam diabolicamente para que ele arrogue para si não somente a autoridade de Deus, mas ele deve fazê-lo “com plena consciência de que esse Deus é inimigo dos cristãos e da humanidade em geral. Em bom português: ele deve fazer da imitação do diabo a nova forma da imitação de Deus, ao mesmo tempo que, posando ante as multidões como um novo Deus, as leve a crer que estão cultuando a Deus quando se prosternam ante o Príncipe-diabo” (p. 88).


Nota: O livro "Maquiavel, ou a confusão demoníaca", do professor e filósofo Olavo de Carvalho, pode ser adquirido na Livraria do Seminário de Filosofia, entre outros títulos.

14 abril 2012

Lógica do abortismo



Por Olavo de Carvalho

O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência, abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto, aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.

Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de apreender a noção de "espécie". Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.

A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de "ser humano" não é uma qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.

O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.

Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.

Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.

Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.

Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades? Uma deformidade mental traz a outra embutida.

Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.


Nota: 1) Publicado no Jornal Diário do Comércio, em 14 de Outubro de 2010;
2) A foto acima não faz parte da publicação original.

09 abril 2012

O arrependimento, na visão Calvinista


Por Ricardo Castro
Sicut scriptum est...

Arrepender-se é chorar os pecados cometidos; e não cometer outros após chorar.

Arrepender-se é gemer pelos males praticados; e não cometer outros, que o farão gemer.

Arrepender-se é uma triste vingança pela qual o pecador castiga em si mesmo o que ele gostaria de não ter cometido.

Arrepender-se é uma dor de coração e um amargor de alma pelas maldades que a pessoa cometeu ou nas quais consentiu.

Arrepender-se é lançar mão de um remédio que extingue o pecado, um dom vindo do céu, um poder admirável, uma graça que sobrepuja a força das leis.

As frases acima são um belo exemplo de declarações de quem nunca, jamais, soube o que é fé (conforme as Escrituras), e, muito menos sabe o que é o verdadeiro arrependimento – o arrependimento segundo os ensinamentos escriturístico (segundo as Sagradas Escrituras).

Pela pregação do evangelho o pecador é apresentado à graça e a remissão dos pecados e, ele, sendo libertado da miserável servidão do pecado e da morte, é transferido para o reino de Deus. Ao receber a graça do evangelho pela fé, não há como ele (o pecador) não voltar atrás em sua vida extraviada, tomar o caminho reto e se dedicar com todo seu empenho a refletir no verdadeiro arrependimento. Assim, o arrependimento é parte integrante da sua fé e, também, gerado por esta.

O arrependimento não precede à fé, mas, sim, procede dela. Não obstante, não há, com essa afirmação, a intenção de dizer que haja algum intervalo de tempo no qual ele, o arrependimento, deixe de ser gerado, mas, sim, que o homem não pode aplicar-se retamente ao arrependimento se não reconhecer que pertence a Deus. Calvino afirma que “ninguém pode concluir que pertence a Deus, a não ser que primeiro tenha reconhecido a sua graça”. Isso, segundo ele, joga por terra a ação comum de exigir do candidato ao batismo alguns dias de arrependimento antes de ser recebido à comunhão da graça do evangelho. Ora, bem sabemos que o cristão deve continuar a prática do exercício do arrependimento, e, este exercício se inicia quando ele, o pecador, recebe de Deus a fé.

Só há verdadeiro arrependimento naquele que crê na Boa Nova – no Evangelho. Há, no entanto, duas espécies de arrependimento: o “Arrependimento Legal” e o “Arrependimento Evangélico”. O “Arrependimento Legal”, segundo Calvino, é aquele pelo qual o pecador, angustiado pelo duro castigo imposto ao seu pecado, e como que partido ou quebrantado pelo terror da ira de Deus, permanece preso a essa perturbação, sem poder se desentravar. Já o “Arrependimento Evangélico”, também segundo Calvino, é aquele pelo qual o pecador, estando lamentavelmente ensimesmado e aflito, não obstante levanta-se e eleva-se, abraçando a Jesus Cristo como o remédio para a sua chaga, o consolo para o terro que o bate, o bom porto par o abrigar em sua miséria (não nos esquecendo de que Deus é o originador da fé que conduz o pecador ao arrependimento).

As Escrituras bem descrevem o arrependimento de Caim, Saul e Judas como arrependimento legal: após conhecerem a gravidade do seu pecado eles temeram a ira de Deus, mas, só pensando na vingança e no juízo de Deus, deixaram-se dominar por este pensamento. Da mesma forma as Escrituras bem descrevem o arrependimento daqueles que, depois de feridos pelo aguilhão do pecado, firmados, porém, na confiança da misericórdia de Deus, voltaram-se a ele: Ezequias, Davi, Pedro, Paulo e, muitos outros. Estes, após chorarem amargamente, não perderam a esperança.

Fé e arrependimento não devem ser confundidos – são distintos, mas, unidos. Não é possível separá-los, mas, é possível distingui-los. Segundo Calvino, o verdadeiro arrependimento não subsiste sem a fé. Assim, embora entretecidos por um laço que não se pode desfazer, melhor será uni-los que confundi-los. O arrependimento abrange a conversão completa, da qual a fé uma das partes componentes.

“A palavra hebraica para significar arrependimento quer dizer conversão; a dos gregos significa mudança de conselho ou propósito e de vontade e, de fato, a realidade não corresponde mal a esses vocábulos. Sim, pois, em suma, arrependimento significa que nos retiramos de nós mesmos e nos convertemos a Deus, e, tendo abandonado a nossa primeira forma de pensar e de querer, assumimos uma nova. Por isso, em minha opinião, podemos defini-los apropriadamente desta maneira.” – Calvino

Devemos saber, e bem saber, que o arrependimento é uma verdadeira conversão da nossa vida - conversão essa para servir a Deus e também para seguir o caminho por ele indicado. Assim, o arrependimento procede de um legítimo temor de Deus, não fingido, e consiste na mortificação da nossa carne e do nosso velho homem, e na vivificação do Espirito. Como conversão de vida entendemos uma mudança, não somente nas obras externas, mas também na alma, de modo que, tendo sido despojado da sua velha natureza, o pecador arrependido passe a produzir frutos dignos da sua renovação. Quanto ao proceder de um legítimo temor de Deus, entendemos que, antes de ser induzido ao arrependimento, é necessário que a consciência seja, primeiro, tocada pelo juízo de Deus. E, quanto à mortificação da carne e a vivificação do Espírito, entendemos que o pecador deve renunciar a si mesmo e abandonar a sua natureza e, que, para isso, é necessária a ação do Espírito de Deus, transformando as almas pecadoras em sua santidade, dirigindo-as de tal modo a novos pensamentos e afetos que se pode dizer que não são as mesmas de antes.

“O arrependimento é uma regeneração espiritual cujo objetivo é que a imagem de Deus, obscurecida e quase apagada em nós, pela transgressão de Adão, seja restaurada.” - Calvino

Sicut scriptum est...
Bibliografia utilizadas na construção deste artigo:
- As Institutas, volume 2 (João Calvino – Editora Cultura Cristã)
(Há, no artigo acima, várias compilações da obra acima, não havendo indicação por aspas ou referências, a todas elas. Minha intenção é incitar o leitor a pesquisar nessa obra e, assim lê-la.)

- Referências bíblicas): Mt 3.2,3; Is 40.3; Gn 4.8-16; 1Sm 15; Mt 27. 3-5; 2Rs 20.1-11; Is 37; Jn 3; 2Sm 24.10,25; 12.13; At 2.37; Lc 22.62, At 20.21; 10.42; Ez 18; Jr 4.1; Is 58; Jr 44; At 17.30,31; 2Co 7.9,10; Sl 34.14; Is 1.16,17; Rm 8.5-8.