Por Ricardo Castro
Sicut scriptum est...
Quem é diretamente responsável pelas más obras?
Quando se põe a serviço do Diabo, o homem é levado pelo que agrada ao Diabo, e não pelo que lhe agrada?
Devemos atribuir algo a Deus quanto às más obras, nas quais a Escritura revela que seu poder age de algum modo?
As questões acima são relevantes e intrigantes.
Agostinho comparava a vontade do homem com um cavalo, que é governado pelo desejo daquele que o monta.
A vontade do homem natural está sujeita ao senhorio do diabo, sendo por ele conduzida, o que não significa que seja constrangida pela força e sem a sua aprovação, como se força um servo ou um escravo a fazer o seu trabalho, por mais que este o deteste. Sofrendo os abusos e as mentiras do diabo, é por necessidade, e não por constrangimento, que a vontade se sujeita a obedecer ao que o diabo quer. Isso é assim, porque aqueles que não recebem de Deus a graça de serem governados por seu Espírito, são abandonados e deixados com o diabo, para serem conduzidos por ele – 2Co 4.4. A cegueira de todos os praticantes do mal e todos os malefícios resultantes são declaradamente obras do diabo; e, todavia, não é preciso procurar a causa fora da vontade humana, da qual procede a raiz do mal e na qual está a base do reino do diabo, quer dizer, o pecado. Os incrédulos se encontram tão intoxicados pelo diabo, que, em seu estupor, não tem consciência da sua miséria. Assim, todos os que vivem segundo o curso do mundo, ou seja, segundo as inclinações da carne, batalham sob o comando do diabo – Ef 2.2.
Agora atentemos para o que ocorreu com Jó. Os caldeus causaram vários danos a Jó, matando os seus pastores e roubaram todos os seus camelos. E nós, quando vemos ladrões cometendo todo o tipo de roubos e mortes, não temos dúvida em lhes imputar culpa e de os condenar. Ora, assim é, e a história atesta que isso provém do diabo. Mas, Jó reconheceu que era obra de Deus, dizendo que Deus o tinha despojado dos bens que lhe tinham sido arrebatado pelos caldeus!
Como, então, poderemos dizer que uma mesma obra foi realizada por Deus, pelos homens e pelo diabo, e não desculparmos o diabo, sendo que parece agir em conjunto com Deus, ou, por que não dizer que Deus é o Autor do Mal?
Para responder a questão acima, temos de considerar primeiro o fim e depois a maneira de agir. O propósito de Deus era responder a um questionamento do diabo e também, nos mostrar a paciência de Jó em meio à adversidade. Satanás esforçou-se para levar Jó ao desespero. Os caldeus se empenharam na empreitada de enriquecer-se roubando bens alheios. Temos então, bem definido as diferenças de propósitos, entre a obra de uns e outros. E vemos aqui uma verdade, dura verdade: “Os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores são instrumentos da divina providência, dos quais o próprio Senhor se utiliza para executar os juízos que determinou” - (Calvino). Assim, Satanás e os perversos salteadores foram os ministros, e Deus foi o autor.
“O que é Satanás senão o verdugo de Deus para punir a ingratidão humana?” – Calvino
O Senhor deixou o seu servo Jó com Satanás para que este o afligisse e, por outro lado, entregou-o aos caldeus, ordenando-lhes que agissem como seus ministros, e encarregou o diabo de os impulsionar e guiar. É evidente que Satanás está sujeito ao poder de Deus, e é de tal maneira governado por sua vontade, que se vê obrigado a obedecer-lhe e a cumprir o que lhe manda. Assim, ele, Satanás, que opera interiormente com seu poder compelidor, é ministro de Deus, de tal maneira que só age em obediência à ordem divina. Voltando ao caso que estamos considerando: Satanás estimulou com os seus aguilhões venenosos, o coração dos caldeus para cometerem aquela iniquidade e, estes, por sua vez, eram maus e, dando-se à prática daquela maldade, contaminaram o seu corpo e a sua alma.
Portanto, segundo Calvino, é próprio falar que a atividade de Satanás é reprovada, exercendo ele o seu reinado, isto é, o reinado da perversidade. Podemos muito bem dizer também que, de algum modo, Deus age quando Satanás, como instrumento de sua ira, segundo a sua vontade e as suas ordens, impele os homens para lá e para cá para executarem os seus juízos. Por tudo isso, vemos que não há incoerência em atribuir uma mesma obra a Deus e ao diabo, como também aos homens. Mas a diversidade, que está na intenção e no meio empregado, faz com que a justiça de Deus em tudo e por tudo se veja irrepreensível. A malícia do diabo e a do homem são reveladas pela confusão feita em ambos.
O que alguns apresentam no sentido de que Deus permite o mal, mas não o envia, não pode subsistir. Frenquentemente as Escrituras afirmam que Deus cega e endurece os maus, e que muda, dobra e move o coração deles. Não está certo empregar essas formas de falar recorrendo à presciência ou à permissão de Deus. O que vemos claramente é que o que existe é a Providência de Deus, e não outra coisa. Deus, para executar os seus juízos por meio do diabo, ministro da sua ira, dirige para onde bem lhe parece o conselhos dos maus, dá seguimento à vontade deles e confirma o seu esforço – Jó 12.20,24; 2Ts 2.11; Is 63.17; Ex 4.21; 7.3; 10.20; Ex 3.21; Dt 2.30; Sl 105.25.
“Enquanto por instrumentalidade dos ímpios, Deus leva a cabo o que decretou em seu juízo absconso, não são eles excusáveis, como se lhe estejam a obedecer ao preceito, que, deliberadamente, violam em sua desregrada cobiça.” – Calvino
Todas as vezes que aprouve a Deus castigar as transgressões de seu povo, não o fez por meio dos maus? Certo, nesses casos veja-se bem que o poder e a eficácia da ação procediam dele, e que aqueles maus eram apenas seus ministros. Por vezes ele ameaçou que com assobios chamaria nações para virem destruir Israel, por vezes os comparou com uma rede, e também como um martelo – Is 5 e 7; Ez 12.13; 17.20; Jr 51.20; Jr 50.
“No que os iníquos pecam, isso vem deles mesmos; e que, se ao pecarem fazem algo, isso vem do poder de Deus, que divide as trevas como bem lhe parece.” O ministério de Satanás se propõe a incitar os maus, ao passo que Deus, por sua providência, os quer dobrar ora para cá, ora para lá. Isso vemos claramente na ocasião em que um espírito maligno, enviado por Deus, invadiu Saul (ou o deixou). Não é lícito atribuir isso ao Espírito Santo. Portanto, vemos que o espírito imundo é chamado de espírito de Deus, sendo que ele responde ao beneplácito e ao poder de Deus; é instrumento da sua vontade, e não autor propriamente dito.
Há uma grande distância entre o que Deus faz, o que o diabo faz e o que os malfeitores fazem numa mesma obra. Deus faz servir à sua justiça os instrumentos maus que ele tem na sua mão, e que ele pode manobrar em prol de tudo quanto lhe pareça bom. O diabo e os ímpios, maus como são, produzem e criam, mediante suas obras, maldade concebida em seu espírito perverso.
O diabo reina num homem mau e, Deus age tanto num como no outro.
Sicut scriptum est...
Bibliografia utilizadas na construção deste artigo:
- As Institutas, volume 1 (João Calvino – Editora Cultura Cristã)
(Há, no artigo acima, várias compilações da obra acima, não havendo indicação por aspas ou referências, a todas elas. Minha intenção é incitar o leitor a pesquisar nessa obra e, assim lê-la.)
FONTE: SICUT SCRIPTUM EST
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