Uma análise, à luz de Mateus 5:17-48, concernente ao ensino de Jesus sobre a Lei.
Por MESQUITA NETO, Nelson Ávila (E. T. C. S.)
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe a analisar o modo como Jesus abordou a lei do Antigo Testamento ao longo de sua vida e ministério, tendo por objetivo esclarecer se, de fato, algo da lei ainda se aplica aos cristãos de nossos dias ou se toda a lei foi cabalmente abolida em Cristo, de modo que todas as suas ordenanças perderam completamente o caráter de obrigatoriedade.
Iniciaremos apresentando a problemática em torno da terminologia e as diversas discussões que se levantam ao tentarmos conceituar a palavra lei no Novo Testamento. Neste primeiro momento tentaremos transitar, sem muita profundidade, ao longo de algumas das principais vertentes teológicas que versam a este respeito.
Em seguida, tendo como fundamentação o texto de Mateus 5:17-48, avaliaremos a negativa de Jesus (“Não vim abolir a lei...” – Mat 5:17), assim como o significado de “cumprimento” em Seu discurso (Mat 5:17-20) e, por fim, Sua relação para com os escribas, fariseus e a própria lei (Mat 5:21-48), buscando responder a pergunta que se apresenta no enunciado: “Cristo nos tornou fora da Lei?”.
2 O QUE SE ENTENDE POR LEI?
A primeira necessidade que se nos apresenta ao abordarmos a questão do relacionamento entre Cristo e a Lei, é definir o que se pretende expressar por “Lei”, já que esta pode adquirir diferentes significados dependendo da escola teológica que a estiver conceituando.
Alguns a entendem como absolutamente una e inseparável; outros a vêem como dividida em três aspectos (Civil, Cerimonial e Moral). Existem ainda momentos em que ela é utilizada num sentido teológico, enquanto noutros o sentido é evidentemente histórico. Não podemos esquecer também que, por vezes, esta ganha a forma de uma figura de linguagem (metonímia), com o objetivo de referir-se ao todo do Pentateuco ou mesmo ao próprio Antigo Testamento.
Este ponto é importante, porque o modo como se encara a “lei” traz conseqüências determinantes na hermenêutica e práxis do intérprete. Douglas J. Moo (1983, p.73), citando Gerhard Ebeling, ressalta a importância, e influência, de uma definição de Lei sobre correntes teológicas, ao observar que “na teologia dos Reformadores”, por exemplo, “todo o problema se concentra tanto sobre o conceito de lei que o todo da teologia (no sentido da estrutura essencial da teologia) se mantém de pé ou cai com ele”[1]. Para ele, foi justamente o conceito de Lei dos Reformadores que os levaram a equiparar circuncisão a batismo.
Ainda sobre a questão da discussão quanto ao uso do termo “Lei”, Moo aponta para sua contemporaneidade ao relembrar-nos as aproximações feitas, entre os meados e o fim do século passado (séc. XX), pelo proeminente teólogo neo-ortodoxo Karl Barth, em seu ensaio intitulado Gospel and Law, e o livro de Daniel Fuller, Gospel and Law: Contrast or Continuum?. Na proposta de Barth o termo “Lei” deve ser entendido como o conteúdo do evangelho, enquanto que para Fuller a Lei é posta ao lado do Evangelho, como “[...] partes de um continuum, ao invés de itens contrastantes. [...] o livro de Fuller ilustra como as duas formas da antítese lei/evangelho continuam a ser tratadas como inter-relacionadas” (1983, p. 74)[2].
Em seu livro, “Lei e Graça”, Mauro F. Meister acertadamente aponta para o fato de que:
A revelação da lei de Deus, como expressão objetiva da sua vontade, [...] foi revelada ao longo do tempo. Dependendo das circunstâncias e da ocasião em que foi dada, possui diferentes aspectos, qualidades ou áreas sobre as quais legisla. Assim, é importante observar o contexto em que cada lei é dada, a quem é dada e qual o seu objetivo manifesto. Só assim poderemos saber a que estamos nos referindo quando falamos de lei (2003, p. 41).
Meister, em consonância com a teologia reformada expressa na Confissão de Fé de Westminster, propõe uma compreensão da “Teologia do Pacto” como chave hermenêutica para o entendimento da Lei no Novo Testamento. Por Teologia do Pacto, é suficiente, por hora, compreendermos resumidamente a distinção traçada entre (1) “pacto das obras” – que é o pacto operante antes da queda e do pecado, o qual “[...] dependia da sua [de Adão e Eva] obediência à lei dada por Deus de forma direta em Gênesis 2.17” (2003, p. 30), sobrevindo em conseqüência da desobediência a esta, a maldição do pacto das obras, a saber: a morte; e (2) o “pacto da graça” – expresso como:
[...] a manifestação graciosa e misericordiosa de Deus, aplicando a maldição do pacto de obras na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo, fazendo com que parte da sua criação, primeiramente representada em Adão, e agora representada por Cristo, pudesse ser redimida (2003, p. 31).
Esta é justamente aquela visão de Lei que a apresenta como estando dividida em três aspectos: 1) Lei Civil ou Judicial; 2) Lei Religiosa ou Cerimonial e 3) Lei Moral; e devido à encarnação, morte e ressurreição do Cristo, instaurando o “pacto da graça” de Deus e revelando plenamente o significado daqueles tipos e sombras na Lei Cerimonial que apontavam para Sua vinda, bem como fazendo expirar o caráter civil que vigorara no Estado Teocrático de Israel até a inauguração de Seu Reino, nos deixou sobre a lei moral de Deus (isto é, todas as injunções que têm a natureza e o caráter de Deus como a base de sua existência), a qual não deve ser cumprida como um meio para se alcançar a salvação, mas somente numa atitude de amor e deleite em Deus, em virtude de termos recebido tão grande salvação, buscando viver fielmente de acordo com a expressa vontade dEle para Sua própria glória. Leonard T. Van Horn (2009, p. 30) expressa essa questão muito bem quando declara:
É verdade que nossa entrada no céu não acontece por méritos nossos e sim pela graça de Deus. Mas é igualmente verdade que a pessoa nascida de novo pelo Espírito de Deus será uma pessoa que ama a Palavra de Deus e busca, pela ajuda de Deus, seguir os mandamentos dele.
Moo (apud ZASPEL, 1997, p. 144), ao contrário de Meister, argumenta:
Os judeus nos dias de Jesus e Paulo certamente não dividiram a lei em categorias; pelo contrário, havia uma forte insistência de que a lei era uma unidade e não poderia ser obedecida em partes. Sendo este o caso, requereríamos fortes evidências de dentro do Novo Testamento para pensarmos que a palavra “lei” em certos textos possa ser aplicada a uma parte apenas da lei.[3]
Ele afirmou, inclusive, que “nomos para Paulo é basicamente um todo único e indivisível [...] A lógica do argumento de Paulo proíbe uma distinção nítida entre lei moral e lei cerimonial” (1983, p. 84)[4].
Entendemos ser a lei, de fato, uma “unidade”, no sentido de que toda a lei, em qualquer de suas proposições (como um todo), revela a expressa vontade de Deus para o Seu povo, e a transgressão desta (em qualquer de suas partes) acarreta sempre em separação com Ele. Contudo, não perceber diversidade na lei é fechar os olhos para os diferentes propósitos nela apresentados. Os Dez Mandamentos, por exemplo, apresentam a disposição que o povo de Deus deve ter para com Ele e para com seu próximo, e assim, reflete um propósito diferente daquele estabelecido nas cerimônias prescritas na lei, que visavam claramente, segundo nos é dito no N. T., prefigurar, como que por meio de “sombras”, símbolos e tipos, a obra e o ministério que seria desempenhado pelo Messias prometido.
Embora Moo afirme que o apóstolo Paulo opere com este conceito de Lei una e indivisível, isto se torna um grande problema quando lemos em Romanos que, mesmo se utilizando muitas vezes da palavra nomos (Lei) como alusão a lei mosaica (Rom 2: 22-23, 7: 7 etc., onde cita mandamentos expressos no Decálogo entregue por Deus a Moisés), este também se refere aos Salmos 5:9; 10:7; 14:1-3; 36:1; 53:1-3 e 140:3, bem como de Isaías 59:7,8, como sendo igualmente lei (nomos) em Rom 3:10-19, apresentando um conceito de lei que se estende para além da lei mosaica. Ele concebe ainda a existência de uma “lei das obras” (έrgwn) e uma “lei (nómou pίstews) da fé” (e para os que afirmam não haverem distinções na lei, Paulo pergunta “Por que lei?” ou “Por qual lei?” – δiά poίon nómou - (Rom 3:27), ao que também nós questionamos com uma certa dose de ironia: há mais de uma lei?), e apresenta a “justificação” como sendo proveniente da fé, “independentemente das obras da lei” (Rom 3:28), não esquecendo de acrescentar mais adiante que a lei não é anulada pela fé, mas antes, confirmada por esta (Rom 3:31), demonstrando que isto não é uma novidade apresentada por Jesus ao dar-se início a Nova Aliança, mas, por meio do exemplo de homens como Abraão e Davi, busca provar como a justificação pela graça mediante a fé sempre foi o meio pelo qual Deus salvou os Seus (o que é consistente com o ensino de Hebreus 11). No capítulo 7, inclusive, Paulo faz uma grande exposição de como a lei de Deus revelou as facetas do pecado, e este mesmo pecado, em virtude de sua malignidade, acabou por distorcer a santa lei, afim de que esta, que fora dada para a vida, se tornasse em morte. Paulo indaga: “Que diremos, pois? É a lei pecado?” E ele mesmo responde: “De modo nenhum!” (Rom 7:7). O apóstolo afirma que a lei do Senhor “é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Rom 7:12). Diz também que esta lei é “espiritual” (Rom 7:14), de sorte que “no tocante ao homem interior” ele tem “prazer na lei de Deus” (Rom 7:22) e dá “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”, que o livrou do “corpo desta morte”, de maneira que ele, de si mesmo, com a mente, é “escravo da lei de Deus” (nómw θeoύ), embora na carne, em virtude do pecado, o seja da “lei do pecado” (Rom 7:24-25). Além desta “lei (nómw amartίaς) do pecado” (Rom 7: 23), Paulo ainda trata de uma “lei (nómou tou anδróς) conjugal” (Rom 7: 2), o que parece expressar distinções demais para uma lei tão indivisível.
As próprias punições previstas na lei do A. T. eram diferenciadas de acordo com a transgressão cometida; e isto revela um pouco desta diversidade também, pois, conquanto cada transgressão fosse absolutamente abominável aos olhos do Senhor, o nível de severidade aplicado na punição não era o mesmo. É como o Dr. Don Kistler (1999, p. 09) coloca ao citar Jonathan Edwards:
Todo pecado é de proporção infinita, e é mais ou menos hediondo, dependendo da honra da pessoa ofendida. Desde que Deus é infinitamente santo, o pecado é infinitamente mal.” Isto é o porquê de não haver tal coisa como um pecadinho, pois o menor pecado é um ato de traição cósmica cometido contra um Deus infinitamente santo.[5]
Se encararmos a Lei de uma maneira estrita, como uma unidade somente, a punição deveria ser a mesma para cada transgressão desta, e nem mesmo existiria algo como diferenciação entre transgressões. Talvez por esta razão o próprio Dr. Moo, como bem nos faz lembrar Walter C. Kaiser Jr. (apud GUNDRY, 2003, p. 203), um ano após ter escrito“Law,” “Works of the Law,” and Legalism in Paul, comentou que:
Embora seja verdadeiro que uma distinção teórica [entre lei moral e lei cerimonial] [...] não era feita, surge, por exemplo, em Filon e Qumrã, uma diferenciação prática desse tipo. A apropriação que Jesus faz da ênfase profética sobre a necessidade de uma obediência interior, o seu comentário sobre “os mandamentos mais importantes”, a elevação do mandamento do amor [...], tudo sugere que ele tenha operado com esse tipo de distinção [...] Não é ilegítimo encontrar a semente desse tipo de distinção em textos como Marcos 7.1-23.
FONTE: EM DEFESA DA GRAÇA
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