"A Verdade não precisa de defesa; por si mesma ela se defende. A Verdade precisa ser proclamada!"

08 abril 2010

Por que também não sou de esquerda

Por Helder Nozina*
 
Nenhum sistema de governo ou de organização sociopolítico e econômico é de Deus. Essa afirmação é praticamente unânime nos meios evangélicos e é usada por muitas pessoas para dizer que não são nem capitalistas nem socialistas. Mas há duas ressalvas que precisam ser feitas.

A primeira é que isso não significa que todos os sistemas sejam igualmente bons aos olhos do Senhor. Há sim sistemas melhores do que outros. O fato de não existir um que seja perfeito não significa que não existam opções boas e ruins.

A segunda é que essa afirmação é um "praticamente" porque, na verdade, vários evangélicos agem como se certas bandeiras políticas fossem, de fato, o cumprimento do Reino de Deus na Terra. E quando esses modelos são criticados, a boca dos críticos é amordaçada.

Foi o que muitos esquerdistas fizeram com a articulista Norma Braga, que escreveu o artigo Por que não sou de esquerda, publicado na revista Ultimato. A teologia pode ser livre, desde que você não critique a esquerda. E aí começa, lá e em alhures, um rosário de acusações:

1) Que a autora foi simplista;
2) Que criticar a esquerda significa aceitar tudo o que vem da direita;
3) Que esquerda e direita se equivalem.

Não é possível mesmo responder a tudo em um artigo de revista que deve caber em uma página. O jornalismo não é para profundidades, não há espaço para isso. Blogs também não. Mas há espaço para mostrar algumas razões que explicam por que não sou de esquerda:

1) O direito de propriedade é bíblico
O socialismo marxista defende o fim da propriedade individual, que deve ser coletiva. Até que cheguemos a um comunismo utópico, o Estado deve distribuir os bens entre os cidadãos. Vários cristãos citam a igreja de Jerusalém como um modelo desta utopia:
Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. (Atos 4:32)
O que parece escapar aos socialistas cristãos é que esse dividir era um ato voluntário e nunca foi uma exigência no Novo Testamento. É o que mostra a condenação de Pedro a Ananias:
Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não estaria em teu poder? (Atos 5:4a)
Na verdade, Jesus não tinha problema algum em ser sustentado pelas ofertas de mulheres que possuíam bens, provavelmente pessoas consideradas ricas na sociedade de seu tempo:
Aconteceu, depois disto, que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus, e os doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens. (Lucas 8:1-3)
Logo, fica claro que não é e nem nunca foi o plano de Deus para este mundo a instituição da propriedade coletiva. Seja no Antigo ou no Novo Testamento, a Bíblia sempre reconheceu o direito de cada pessoa ter os seus bens e não condena a posse de riquezas.

Agora, claro, isso não significa endossar o capitalismo selvagem: a riqueza construída em cima da pobreza de outros. Contudo, o rico tem sim uma oportunidade de santificação (sim, santificação!), se fizer bom uso de seus bens:
Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; que pratiquem o bem, sejam ricos em boas obras, generosos em dar e prontos a repartir; que acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida. (1 Timóteo 6:17-19)
Não há problema em ser rico! O problema é confiar nas riquezas e não em Deus, é não usar os seus bens para glorificar ao Senhor, servindo o próximo. Quando um rico dá emprego a outros, ele está fazendo isso. Quando ele faz obras de caridade, ele faz isso. Quando ele dá ofertas à Igreja e sustenta missionários (imagine o privilégio de assistir a Jesus!), ele faz isso.

Apenas este argumento seria suficiente para desmontar o projeto da esquerda. Mas há mais.

2) O Estado não é responsável pela sua felicidade
A esquerda confia muito no governo. Espera que ele sustente a todas as pessoas, crie cotas para os mais pobres, dê o Bolsa Família, gás, renda mínima, casa própria e tudo o mais para as pessoas. Pelo menos no Brasil é assim: os mais pobres querem bolsa-família, tem escola pública, querem lotes com casa do Governo, gás, leite...em Cuba é um pouco pior. O Estado decide o quanto de manteiga você pode comprar, o que você pode ler e que opiniões são ou não defensáveis e podem ser pensadas naquele país (não só lá...vide Google vs. China e nuestro amigo Chávez).

Na prática, o ideário de esquerda transporta em maior ou menor grau as responsabilidades dos indivíduos para o Governo. Contudo, o ensino bíblico é o de que, em condições normais (e isso inclui Império Romano e os reinados de Israel no AT), a prosperidade das pessoas depende delas, e não do Estado. Fatores como preguiça, trabalho e retidão contam para alguém enriquecer ou não:
O que trabalha com mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes vem a enriquecer-se. O que ajunta no verão é filho sábio, mas o que dorme na sega é filho que envergonha. (Provérbios 10:4-5)

O alongar-se da vida está na sua mão direita, na sua esquerda, riquezas e honra. (Provérbios 3:16)

Um pouco para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade, como um homem armado. (Provérbios 6:10-11)
Sim, existem pecados "estruturais" que provocam injustiça social e os profetas estão recheados de denúncias a isso. Não ser de esquerda não significa endossar essas injustiças. Mas significa sim, reconhecer que, em circunstâncias normais, as pessoas empobrecem ou enriquecem, prosperam ou definham por seu próprio mérito.

Vou além: se não existir um regime totalitário, mesmo em condições difíceis, as pessoas prosperam ou não independente dos tais pecados estruturais. José prosperou mesmo sendo um escravo no Egito. Jacó chegou sem nada e saiu rico trabalhando como assalariado de Labão. Neemias era copeiro e virou governador. Jefté era o filho de uma prostituta e virou juiz de Israel. E isso em sociedades onde a mobilidade social era bem mais difícil que nos regimes capitalistas do século XXI.

Repare: a Bíblia não joga sobre o Governo a responsabilidade de dar bem-estar material. O sucesso ou fracasso das pessoas depende muito mais delas mesmas do que do Estado.

3) A igualdade absoluta não existe
A igualdade parece ser o valor supremo da esquerda para a construção de uma sociedade. No entanto, esse ideal é utópico.

Basta mostrar um fato: nem mesmo no céu há igualdade.
Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão; se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano; mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo. (1 Coríntios 3:14-15)

Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, 
segundo o seu trabalho. (1 Coríntios 3:8)

Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão. (2 João 8)
A salvação é pela graça e não envolve mérito. Mas nem todos receberão a mesma coisa. Uns terão galardão completo. Outros, parece que só serão salvos, como que pelo fogo. Cada um receberá de acordo com o seu trabalho.

Se é assim no céu, naquilo que a Bíblia coloca como o Reino de Deus em plenitude...por que esperar uma igualdade tão grande neste mundo? Nem Jesus ensinava isso:
A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu. (Mateus 25:15)
Isso não é injustiça. Uma vez dada a salvação, as pessoas devem receber segundo a sua dedicação, capacidade, mérito. E este não é o pensamento da esquerda.

4) O Estado não deve patrulhar o pensamento
Reconheço que restringir ou censurar a liberdade de imprensa, de expressão e de opinião não é uma exclusividade da esquerda. Mas é inegável o fato de que ela recai muito mais neste pecado do que a direita ou o centro.

Sei que muitos cristãos, reformados inclusive, gostariam de um Estado teocrático, confessional, onde as leis de Deus fossem as leis da nação. Dar as pessoas a liberdade de pensarem e opinarem o que quiserem, mesmo que sejam pecados aberrantes, como o aborto, parece mais satânico do que santo.

Contudo, a esperança da vinda completa do Reino de Deus não é para este mundo. Como bem diz a Bíblia, aguardamos uma pátria diferente:
Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra. Porque os que falam desse modo manifestam estar procurando uma pátria. E, se na verdade, se lembrassem daquela onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas, agora, aspiram a uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto lhes preparou uma cidade. (Hebreus 11:13-16)
A sociedade ideal não será alcançada aqui. E todo regime político ou econômico deve levar em consideração que vivemos em um mundo caído de pessoas imperfeitas que jamais se curvarão espontaneamente a Cristo. E não tem jeito: trigo e joio devem crescer lado a lado até o fim. Não há como separar aqui.

Talvez por isso Jesus e os apóstolos jamais pediram ao Império Romano que o Estado apoiasse a Igreja. Nem condenaram os romanos por permitirem a idolatria. Na verdade, o que parece transparecer em Atos é que o desejo dos cristãos era o de pregarem livremente a Palavra. Quando Paulo apela ao direito romano (e Atos mostra favoravelmente Paulo usando a sua cidadania), o que ele busca (e de certa forma consegue) é a liberdade de pregar, enquanto os judeus querem calá-lo.

Considerando que os judeus queriam uma uniformidade judaica e que os pagãos queriam uma uniformidade pagã (por isso odiavam judeus e cristãos), os cristãos deveriam ser os primeiros a defender a liberdade de ação, de opinião, de pensamento, de expressão. O Império Romano não é o baluarte da democracia, mas deu uma liberdade aos seus cidadãos maior que a de impérios anteriores, tanto que tornou possível que Paulo usasse o Estado para preservar o pescoço e continuar pregando.

Quando o Império Romano perseguiu os cristãos ou mesmo matou a Jesus, apenas se desviou do alvo, feriu as suas próprias regras, corrompeu o que havia de belo em seu governo. Mas nada disso não muda o fato de que, quando Roma se aproximou da liberdade, o cristianismo encontrou defesa, apesar de ser uma minoria.

No totalitarismo isso não é possível. E não há comunismo sem ele, porque você só consegue produzir a igualdade de modo artificial: calando os descontentes, os diferentes, preservando a unidade às custas do indivíduo.

E, se os cristãos percebessem melhor o que Jesus e os apóstolos ensinaram sobre o Estado e conhecessem melhor a própria história, jamais aceitariam o totalitarismo. E como ele é indispensável à esquerda (como provam Chávez, os chineses, os norte-coreanos e, em certa medida, o PT), eu não entendo como os cristãos podem ser de esquerda.

Encerro aqui o meu texto. Não é exaustivo, não trata de tudo, talvez nem seja muito profundo. Mas creio que é suficiente.

*Nota: Texto gentilmente cedido pelo autor e disponível originalmente no blog 5 Calvinistas

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