Por Jorge Fernandes Isah
Gálatas 2.20 é um versículo precioso, poderia dizer, inigualável. Não somente porque foi o versículo da minha conversão [que descrevi no texto O dia em que Cristo me fez], mas porque, de uma forma singular, poder-se-ia resumir a vida cristã ou, ao menos, descrevê-la plenamente. É também o alvo, o de um dia poder dizer: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. São palavras que me acalentam, me dominam, me compungem a encontrar-me nelas. Poderia ser a epígrafe cravada na minha sepultura, porém, muito mais a quero gravada em meu coração. O resumo de tudo o que almejo e quero experimentar. Mais do que isso, ser. E desde aquele momento, decorei-as, como se decora a melodia da mais bela entre todas as canções. Como se ouvisse a sinfonia perfeita, inefável, a síntese do mais puro e santo sentido, ainda que com palavras indizíveis em sua verdade absoluta e extraordinária. Como se estivesse a construir algo que sei impossível, por mim mesmo, construir. De certa forma, invejo a Paulo por ter sido ele e não eu a proferi-las; mas creio que saídas de sua boca, elas têm o som da minha voz, o som da sua voz, o som da voz de todos os santos, daqueles que são um em Cristo, e por ele vivem.
Mas, o que levou o apóstolo a proferi-las?
A mensagem central de Gálatas é a disputa: Lei x Evangelho. Em vários momentos, parece haver o desprezo de Paulo pela lei, como se fosse descartável e não existisse mais nenhum sentido nela. Mas esse não é o caso. Em outra carta, ele diz: "E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom” [Rm 7.12]. E, ainda: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei” [Rm 3.31].
O que está em disputa entre Paulo e os judaizantes é a lei como instrumento de salvação. Eles pregavam contra o Evangelho, ao afirmar que era necessário se cumprir toda a lei para salvar-se. Por isso, o apóstolo diz: “Se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” [ 2.21]. Ora, se para ser salvo o crente deveria cumprir toda a lei, qual a razão de Cristo encarnar, padecer, e morrer na cruz? Por isso o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo [2.16]. Desta forma, Paulo constrói a defesa do Evangelho da Graça, sem que haja nenhum tom antinominiano [1] em seu discurso, pelo contrário: “É porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor” [2.18].
Se Cristo pagou na cruz a dívida que tínhamos para com Deus, e se está paga, definitivamente paga, o que mais podemos fazer que ele não fez? Fico a imaginar Paulo rindo-se da tolice desses homens, mas entristecendo-se pelo caráter sutil e maligno de distorcerem a fé a fim de enganar incautos, e anular a graça. Cristo, ao destruir o pecado e seu caráter condenatório sobre os eleitos, não poderia restituí-lo novamente, ao ponto em que seria exigido o cumprimento da lei para a salvação. Se a justiça foi decretada na cruz para os que crêem, se o pecado foi morto, ressuscitá-lo significaria dizer, entre outras coisas, que a obra do Senhor não foi eficaz, e de que, loucamente, ao trazer a justiça, trouxe a injustiça.
O apóstolo está a condenar aqueles que anteriormente pregavam o Evangelho da graça, para agora viver pela lei, tornando-os em transgressores, porque quem não está morto para a lei, vive para ela, ou seja, vive para a morte, pois pela lei ninguém pode ser justificado perante Deus [3.11], antes está debaixo da maldição da lei. Ao contrário, quem está morto para a lei, vive para Deus, eternamente. Paulo ensina a teologia correta, a doutrina correta, mas muito mais do que isso.
Ele disse que estava morto para a lei.
Que estava crucificado com Cristo.
Que vivia, não mais ele, mas Cristo.
Que Cristo o amou, e se entregou a si mesmo por ele.
Então, o que levou o apóstolo a proferir o verso 2.20?
A consciência de tudo isso acima, mas, sobretudo, reconhecer que, sem Cristo, nada disso seria possível. Nem mesmo ele, Paulo, seria possível. De uma forma maravilhosa, Paulo reconhecia a completa dependência do Senhor, e a obra fantástica que fez para que ele pudesse reconhecer-se em Cristo. Sem ele, o que seria Paulo? Sem Cristo, o que seria eu? Você? Não haveria esperança, não haveria o perdão, nem a salvação. Apenas a tristeza assoladora de que a condenação era questão de tempo, irremediável, uma maldição a pairar sobre nossas cabeças eternamente. E se eu, antes condenado, agora salvo pelo poder de Deus, o que quereria exaltar em mim mesmo para voltar à destruição? Ou seria possível exaltar-me na ruína? Ou antes, arrependendo-me de mim mesmo para ser um dia como Cristo é? Pois se olharmos para nós, como somos, sem Cristo, não haverá nada além de condenados sem que seja preciso esperar o castigo, pois estamos já a “curtir”, sobre nós, a ira de Deus. Se olhar para mim, descobrirei apenas que sou miserável, e nu, e cego. Se olhar, e apenas me ver, há um pecador naufragando em pecados. Se sou o futuro, não há futuro; apenas o passado de morte, de sofrimento e angústia. Ao contrário, se vejo Cristo em mim, assim como Paulo o via em si, as coisas mudam de figura. Já não sou mais um condenado, antes justificado. De pecador, a santo. De maldito, a bendito. De desgraçado e vil, a agraciado e amado.
A teologia de Paulo [2] estava certa. Ela lhe trouxe esperança, certeza, convicção. E abriu-lhe os olhos para a mais surpreendente e inesperada verdade, de que ele já não era mais ele, mas Cristo a viver nele. E trazia no seu corpo as marcas do Senhor [6.17], marcas profundas que não o impediam de se ver como era, de reconhecer o que era, de gloriar-se nas fraquezas para que o poder do Senhor em si habitasse [1Co 12.9]. Porém, antes era necessário que compreendesse e conhecesse isso, para depois sentir; pois, como sentir o que não se conhece ou não compreende? Como alguém desejará o que não conhece?
Como qualquer homem, ele tinha de nascer, crescer e amadurecer na fé. Mas ninguém nasce por si mesmo; era necessário que fosse gerado por Cristo; que o sangue do Senhor não somente o limpasse dos pecados, mas corresse em suas veias e bombeasse no seu coração a vida. A vida que somente o Senhor poderia dar, e deu, a despeito de todo o desejo de nos apossar dela como se fosse nossa por direito, e não por dádiva, misericordiosa, e graciosamente entregue pelo amor com que Deus nos amou. O caminho nos é mostrado, mas não há nada que nos faça andar nele, se não nos for revelado. Quem não pode ver, como saberá onde andar?
O certo é que, como João o Batista disse, era necessário que ele diminuísse e Cristo crescesse [Jo 3.30].
E assim será para todos os que foram crucificados e mortos com Cristo.
Se ele não viver em nós, a morte viverá.
Nota: [1] Antinomianismo significa “antilei”. É o oposto de legalismo, e como ele, uma heresia. Para os defensores do antinomianismo, o crente não tem de obedecer à lei de Deus, pois Cristo à pregou na cruz. E se a pregou na cruz, está-se livre para viver como quiser, inclusive pecando o quanto quiser; ao ponto de até mesmo distorcerem o sentido de graça, ao afirmar que, quanto mais se peca, mais a graça se manifesta.
[2] Paulo, ao defender magistralmente o Evangelho da graça, afirmando a justificação somente pela fé no sangue derramado de Cristo na cruz, defende também a sua autoridade e ministério contra os falsos-mestres, os detratores que buscavam difamá-lo e desqualificá-lo como apóstolo. E nada mais verdadeiro do que reafirmar que estava morto para si, para viver para Cristo, enquanto aqueles queriam viver por si mesmos.
[3] Aguçado pela conversa com uma querida irmã, lembrei-me que devia um texto sobre Gl 2.20. E, por mais que escreva, sempre serei devedor a Deus por tê-lo dado a mim.
[4] Não entrei muito na questão da impossibilidade da lei como meio de salvação, a qual farei brevemente em outro texto.
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